domingo, 28 de outubro de 2012

O Duro Caminho da Lealdade


A Lealdade é mais uma das virtudes a serem cultivadas por um artista marcial em evolução através do seu Kung Fu. Desta vez, decidi pegar a definição de "Leal" do dicionário de Cambridge:

firm and not changing in your friendship with or support for a person or an organization, or in your belief in your principles

(firme e imutável em sua amizade com ou apoio para uma pessoa ou organização, ou ainda em sua crença em seus princípios)

Assim, para este post, teremos três tipos de Lealdade: para com suas amizades (que vou usar "relacionamento" no lugar, por ser mais amplo), para com organizações e para consigo (ser Leal a si mesmo).

Lealdade em seus relacionamentos
Todos nós temos relacionamentos com outras pessoas, durante toda a nossa vida. Se você é casado(a) sabe que um bom casamento é feito com Amor, mas ele demanda também Lealdade (e mais uma série de coisinhas). É comum vermos casamentos que começam bem e terminam algum tempo depois, mesmo que muitos deles tenham jurado que o casório seria "até que a Morte os separe". Ora, se você jurou e depois não cumpriu, foi falta de Amor? Talvez. Foi falta de Lealdade? Com certeza.

A Lealdade em um relacionamento à dois não significa que tudo será tranquilo e sem sobressaltos. A Lealdade funciona como o sistema imunológico do seu corpo: se há algo errado, o sistema vai agir para arrumar/corrigir de forma que tudo volte ao seu estado natural de equilíbrio e bem estar.

Antes que você me diga que estou sendo muito duro e que quando falamos do coração, as coisas nem sempre são "sim ou não", saiba que concordo com você. Existem muitas variáveis que podem contribuir para a evolução ou até o fim de um relacionamento. Uma destas coisas pode estar relacionada com os diferentes tipos e temperamentos de pessoas. O Mestre Gabriel já falou delas em um dos nosso Vlogs (veja aqui, o aspecto específico começa na parte 4), usando como tema a escolha de sócios. Em uma análise fria, o casamento e o estabelecimento de uma sociedade têm algumas similaridades, além do que estamos falando neste post.

Lealdade para com organizações
De volta à época dos muitos reinos, na região em que hoje é a China, a Lealdade com um reinado era um atributo bastante interessante para um artista marcial. Ela era um atestado de que aquele artista era confiável, o que poderia render um maior posto no exército e/ou no governo como um todo. Guerreiros não alinhados com nenhum reinado, vivendo apenas para si ou seu grupo também poderiam se considerar leais: eram leais apenas à eles mesmos e suas causas particulares. Trazendo isso um pouco para frente na história, para meados do século 19 e até o início do século 20, um estudante de Artes Marciais treinava com um mesmo Shifu durante toda a sua vida ou até o momento em que aquele Shifu o liberava, e o incentivava, a treinar com outros mestres que poderiam lhe ensinar mais coisas do que ele próprio. Por outro lado, havia os artistas que preferiam ignorar este aspecto do Wu De e treinavam com um Shifu, ou mais de um, ocultamente, e depois, por iniciativa própria, mudavam de Shifu para ir até outro ponto e assim se seguia. Este tipo de artista marcial não conseguia atingir um alto grau de excelência no Kung Fu, pois a sua falta de Lealdade já prevenia o novo Shifu de que aquele sujeito iria treinar ali por apenas algum tempo, então por qual razão ensinar-lhe técnicas mais avançadas do estilo, se isso não seria usado em prol da família? Se o indivíduo não era Leal com a família?

Vamos levar este aspecto da Lealdade para o dia de hoje. Sabe aquela pessoa que trabalha em um lugar, mas vive reclamando do lugar em que trabalha? Que a empresa toma decisões erradas, que o chefe é um idiota, que os companheiros de trabalho são horríveis, que usa produtos do concorrente da própria empresa em que trabalha? Pois bem, falta o desenvolvimento do aspecto Lealdade do Wu De para ela. Isso me lembra quando eu tinha um determinado celular que precisava de um conserto (trouxe de Baltimore e quebrou com 28 dias de uso) mas o valor do conserto era o preço de um aparelho novo. Ao tentar sensibilizar a gerente do suporte técnico, qual não foi minha surpresa ao ver que ela usava um celular de outro fabricante...Foi fácil escolher meu novo celular depois disso.

Em nossa escola, algo similar pode acontecer eventualmente também. Alunos que pagam regularmente suas mensalidades, e treinam com igual regularidade, reclamam de diversos aspectos da academia de forma pública e imprópria. Antes que você me acuse de ser um qualquer-coisa-ista autoritário ditatorial pró burguesia, etc, etc, etc, deixe-me explicar o que quero dizer, com um exemplo simples.

Digamos que você seja contra a existência de espelhos na academia (eu sei, é só um exemplo). Você não concorda porque sua bisavó contava que, ao olhar muito tempo para um espelho sua boca ficava torta (eu sei! Já disse que é só um exemplo). Desta forma, você passa a reclamar no vestiário para seus colegas que é um absurdo uma academia de Kung fu ter espelhos. Ao chegar para treinar, conversa com seus colegas na secretaria sobre como é ruim uma escola com espelhos e que isso deveria ser diferente. Ao participar dos eventos, faz sua parte, mas guarda sempre um momento para reclamar para os que estão próximos que os espelhos são o que impedem a academia de crescer e que deveriam ouvir os alunos e tirar os espelhos. E assim vai...Daí você encontra algumas pessoas que deveriam ter conhecido sua bisavó passam a concordar com você e se cria o grupo que não gosta dos espelhos e, quando juntos, passam a sonhar com um mundo sem espelhos. Só se esquecem de uma coisa: em nenhum momento, sua crítica sobre os espelhos foi levada ao seu instrutor ou sequer direcionada da maneira apropriada para que se possa estudar o banimento de todos os espelhos.

Troque agora "espelhos" por "aquela instrutora", "aquele instrutor", "postagem do fulano no Facebook" e você verá que o exemplo foi bobo, mas de fácil adaptação para a realidade.

Veja, isso não significa que você nunca mais pode reclamar de nada na TSKF, pelo contrário. Fique à vontade! Entretanto, existem maneiras e maneiras de entregar uma reclamação de forma que ela possa ser, eventualmente, um agente de mudança. Eu diria que uma forma está alinhada com o Wu De. A outra não. Mas sua liberdade de escolha em como proceder é total.

Lealdade a si mesmo
Esta é a Lealdade mais difícil e, quando se tem o hábito de falhar neste aspecto, cria-se a porta para falhar nas demais Lealdades.

A pessoa que é Leal a si mesmo age de acordo com o que diz. Se diz que estará em tal lugar em determinada hora, lá estará. Desculpas como "foi o trânsito", "meu cachorro começou a falar" e coisas assim não fazem parte de seu repertório de frases. Se fez o que falou, agiu com Lealdade às próprias palavras. Se não fez, faltou com ela e desculpas são desnecessárias, porque faltou Lealdade do mesmo jeito, independente das palavras que escolha para justificar não ter feito algo que disse que faria.

Se uma pessoa estabelece uma meta de redução de peso, por exemplo, ela não vai descansar até que chegue na sua meta. Ela pode se desviar aqui e ali eventualmente (somos humanos e imperfeitos), mas sua Lealdade para com sua decisão não mudará e será o norte na maior parte de suas escolhas na alimentação e na prática de exercícios.

Desta forma, faz sentido pensar que, quando uma pessoa desenvolve a Lealdade à si própria, ela fortalece o hábito de cumprir aquilo que diz, por consequência, quando a Lealdade é colocada à prova em relacionamentos pessoais e/ou para com organizações, o indivíduo já tem o hábito de ser Leal fortalecido. Por outro lado, se costumeiramente o que a pessoa "fala, não se escreve", como esperar que ela seja Leal com coisas exteriores, se ela não é Leal nem com o que diz a si mesma?

Talvez, sob o olhar da virtude da Lealdade, fique claro uma frase que o Mestre Gabriel sempre costuma dizer nos Cursos de Instrutor: "Hábitos são inicialmente teias de aranha, depois fios de arame."