sexta-feira, 31 de março de 2017

Perfeição: três problemas e um segredo

Há uma lenda antiga que conta sobre uma mulher que tinha habilidades incríveis com a espada. Ela podia derrotar qualquer adversário facilmente, mesmo que fossem vários a atacando ao mesmo tempo. A Dama de Yue aprendeu todas as suas habilidades sozinha, sem nenhum tutor. A vida isolada a fez criar um método de combate infalível. “Armado com a teoria deste método, um pode resistir cem e cem podem resistir dez mil”. A ideia de uma técnica perfeita ou um lutador invencível está diretamente ligada ao misticismo do Kung Fu.

Se há algo em comum entre todo praticante (de longa data) de Kung Fu é que eles almejam a perfeição. Kung Fu é uma habilidade adquirida pelo trabalho árduo e para desenvolver uma habilidade é necessário ter um nível de exigência acima da média.

A maioria dos filmes de Kung Fu trabalham com a noção de que através do treinamento, o praticante (no exemplo, o protagonista) adquire habilidades que o tornam superior a todos os outros. O herói que enfrenta um exército inteiro e sai ileso e vitorioso é o guerreiro ideal. Esse alcançou um nível de maestria que o torna perfeito.

Não é atoa que quando assistimos uma demonstração de Kung Fu ficamos boquiabertos quando o praticante executa manobras difíceis que tem tudo para acabar em um acidente, só que, no final, ele a encerra com perfeição. Isso também explica como nos decepcionamos quando uma belíssima e bem executada técnica falha no último momento. Damos mais atenção a um erro do que dez acertos, simplesmente porque queremos ver algo perfeito.

A ideia da perfeição em si é boa, mas ela não é somente inalcançável como desestimulante. Os praticantes de Kung Fu (e também de outras artes) podem cair na armadilha de se fixarem na perfeição. Isso trás péssimas consequências.

Uma delas é a estagnação. Na nossa mente temos uma ideia de perfeição. Quando vemos que ela não corresponde com a realidade, vem a decepção. Se você pratica Kung Fu e executou uma forma que foi filmada, você já deve ter sentido isso. Enquanto você executa sua forma você dá o seu melhor, faz tudo como você treinou, não houve nenhuma falha que você pudesse perceber. Mas ao ver o vídeo de sua própria execução você percebe que o arco e flecha desalinhou, que seu salto não foi tão alto e que faltou força no final da técnica. Ver que não se é tão bom quanto se esperava pode ser traumático e levar ao desânimo. Ao invés do praticante se comprometer mais com o treino ele simplesmente desiste, pois é mais fácil justificar para você mesmo que a ausência da perfeição foi por conta de N outros motivos do que pela dificuldade em se aceitar como imperfeito.

Em contrapartida, pode ocorrer o oposto. Ao invés de ficar no mesmo lugar, a pessoa passa a querer sempre a começar de novo. Procura outra escola ou até mesmo uma outra atividade. É reconfortante iniciar algo novo, pois a cobrança sobre um novato não é grande, afinal você acabou de começar a treinar. Assim, ninguém espera que sua execução técnica seja perfeita. A falha, para o iniciante, não é só aceitável como também é esperada. Porém, essa atitude é um paliativo, um curativo para o ego, que não trará nenhum benefício em longo prazo. A habilidade verdadeira vem com a superação dos obstáculos que surgem com o tempo. Ao contrário, aquele que sempre recomeça mantém-se sempre limitado ao início.

Mas há outra atitude que surge no praticante que almeja a perfeição que é boa e ruim ao mesmo tempo: a exigência. O praticante de Kung Fu compromissado com ele mesmo passa a ter um olhar crítico para sua técnica. Ele vê sua performance e trabalha em cima dela, buscando se aperfeiçoar. Ele encara os desafios com convicção de que com o esforço necessário será possível superar seus limites. Isso tudo é muito bom, porém pode acontecer da pessoa criar um nível de exigência irreal que nem ele nem seus pares podem conseguir. Essa pessoa passa a ser infeliz, pois vive sempre frustrada com suas falhas e deixa de enxergar seu progresso. Se o praticante não vê progresso nele mesmo e não valoriza suas melhoras, ele eventualmente irá desistir da prática.   

Tudo o que foi dito não nega a importância de se lutar pela perfeição. Ela é essencial para todo artista marcial (em qualquer arte, na verdade). Sem a ideia de perfeição não temos o que almejar, temos a flecha, mas não o alvo. Porém é preciso entender que esse alvo é como o horizonte, ele está lá, sempre presente, mas é também inalcançável. Podemos nos esforçar ao máximo, nos dedicar durante toda vida e mesmo assim nunca alcançaremos a perfeição. Ela é um ideal regulador, algo que, mesmo não sendo possível, é necessário para sabermos onde queremos chegar.

O artista marcial que procura se aperfeiçoar deve sempre ter em mente o ponto de partida  (quem ele era antes de iniciar a prática), o ponto onde ele quer chegar (o ideal de perfeição) e o caminho que ele percorreu (todas as melhorias, desafios e conquistas). Sem essa consciência é bem provável que se caia em um perfeccionismo vão, que só cria problemas e não resolve nenhum.

Essa ideia do ideal regulador é praticada dentro do Kung Fu, pois temos nossos professores e ídolos marciais para nos inspirar. Assim, eles se tornam nosso ideal regulador em um primeiro momento. Depois, a prática vai nos mostrando que a realidade não é perfeita (e nós muito menos), o que nos leva a aceitar nossas falhas como fases de uma grande jornada. A consciência da imperfeição torna possível almejar a perfeição sem se perder dentro dela. A partir disso podemos agir para sanar as falhas na medida do possível.

Com a prática marcial aprendemos que projetamos nossos ideais de perfeição no mundo. Isso leva  compreensão de que fazemos isso com todos os aspectos de nossa vida: Desejamos um relacionamento perfeito com as pessoas, mas isso não é possível. Sempre há atritos e brigas no meio dos bons momentos. Também queremos uma profissão perfeita, que nos mantenha sempre motivados e que seja agradável o tempo todo. Porém isso é impossível, em qualquer trabalho, há tarefas e fases desagradáveis ou desgastantes. A mesma coisa é verdade na sociedade. Nunca haverá um mundo perfeito, sempre teremos problemas para resolver e novos ideais a almejar.


No final das contas a prática do Kung Fu é um caminho eterno, pois ele pretende alcançar algo que não existe no mundo. Mas podemos entender que toda arte é assim: ela tenta trazer para o mundo imperfeito algo que é sublime. Por isso a arte é tão importante para a humanidade. Ela nos mostra as possibilidades de nossas ações quando são lapidadas pelo treino. Mas as possibilidades só se concretizam no momento em que aprendemos a aceitar os vários obstáculos e tropeços da jornada.

Jonas Bravo
TSKF Padre Eustáquio



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