Temos uma ideia errada de liberdade
Liberdade é
algo almejado pela grande maioria das pessoas. É muito difícil ver alguém
escolher a servidão ou a submissão. Mas é importante notar que, em geral, as
pessoas tem uma ideia errada do que é liberdade. Ser livre, em princípio,
deveria ser algo simples. Tudo que seria preciso é a ausência de obstáculos
entre nós e o que desejamos. Porém, esse conceito não é compatível com a
realidade, pois sempre existirão obstáculos. A liberdade só pode ser alcançada
quando aprendemos a lidar com os obstáculos e agir independente deles.
Somos escravos:
O fato é que a maiorias de nós são escravos. Não no sentido de termos um
senhor que nos obriga a executar tarefas desagradáveis. Mas no sentido de que
muitas pessoas vivem a vida inteira sem conseguir as coisas que elas querem
possuir e sem se tornar as pessoas que elas querem ser.
O ser humano é um animal. Mesmo que tenhamos uma grande capacidade
racional, não passamos de um bicho engenhoso. Temos vários impulsos animalescos
que nos mantêm vivos. Comer e beber são exemplos. Quando temos fome estamos sob
um comando natural que só acabará ao ser saciado. Se estivermos famintos o
bastante comeremos qualquer coisa (experimente procurar geofagia no
Google para verificar). Isso ocorre porque nosso corpo está no controle. Neste
caso ele manda em nós.
Em geral isso não é um problema. Pelo contrário, isso nos ajuda a
sobreviver. Mas, muitas vezes, o corpo toma o controle da nossa vida de forma
brutal. A vontade de comer pode fazer uma pessoa comer indiscriminadamente,
tornando-a obesa, hipertensa ou até mesmo provocando diabetes. Isso ocorre,
pois, muitas vezes, nos tornamos escravos das necessidades do corpo. Comer é
preciso, mas com moderação. E esse controle tem que vir da nossa razão, e não
de um impulso natural.
Além de ser um animal, o ser humano tem uma vida social. Isso quer dizer
que as nossas relações com a cultura e com as pessoas tem um peso enorme nas
nossas ações. Através do contato com a cultura podemos agir melhor com os
outros utilizando a etiqueta. Nossa forma de se vestir, as palavras que usamos
e até mesmo que informações compartilhamos são ditadas pela relação com o
outro. Ninguém se veste em casa como se vestiria para ir a um grande evento ou
divide as mesmas informações com um conhecido e com um estranho.
A sociedade tem regras que tornam a vida mais fácil e pacífica, mas a
pressão por ser socialmente aceito pode nos escravizar se não estivermos
conscientes desses perigos. É muito comum ver pessoas prejudicando sua saúde em
prol de um ideal de beleza. Muitas vezes essa é a causa de problemas como a
anorexia e bulimia. Também é comum que maus hábitos da sociedade nos afetem.
Hoje em dia não há uma cultura da prevenção de doenças, mas sim uma cultura de
remediação. Isso significa que as pessoas em geral não cuidam da sua saúde a
não ser que elas estejam doentes. Isso faz que muitas pessoas se alimentem mal
até que se descubram hipertensas, por exemplo.
Temos que agir com Autonomia
Para não sermos escravos de nossos corpos e nem da sociedade é
necessário construir uma noção de autonomia. Analisando a etimologia dessa
palavra veremos que auto = próprio e nomos = leis, assim, autonomia é crias
suas próprias leis. Ser autônomo nesse caso é usar a nossa razão para definir o
fim de nossas ações. Nesse sentido, a liberdade só pode ser alcançada quando
fazemos as coisas por elas mesmas.
Daí
chegamos a outro conceito: a heteronomia. Hetero
= outro e nomos = leis, ou seja,
seguir as leis dos outros. Não podemos agir só porque nosso corpo tem tal e tal desejo ou porque a
sociedade pede tal e tal ação. Agir sem pensar é ser escravo sem saber.
Imagine que você está escolhendo sua profissão. Você quer ser médico.
Mas qual é a sua motivação? Se você for um médico porque sua família (e a
sociedade como um todo) prestigia essa profissão você está sendo um escravo.
Isso é verdade, pois, no caso da profissão se tornar muito difundida e havendo
médicos de sobra, o status da profissão diminui e perde o glamour. Mas você
pode querer ser um médico, pois, na sua visão, é uma carreira que remunera bem.
Porém, há a possibilidade de, depois que você já está exercendo a profissão, você
ver que outra profissão remunera ainda melhor. Aí você vai querer mudar. Em
ambos dos casos você será um médico escravo das circunstâncias e atenderá seus
pacientes de maneira porca e desleixada (lembra da ultima vez que você foi ao
pronto socorro de madrugada?). Isso é agir pelas leis dos outros, é
heteronomia.
Para ser um médico livre seria necessário que sua motivação fosse pela
profissão em si. Ser médico significa cuidar da saúde das pessoas e zelar pelo
bem estar delas. E isso não depende do status da profissão ou da remuneração.
Isso é uma questão de dever, de ser autônomo. Um bom médico criou para ele uma
lei que ele usará todos os seus conhecimentos para salvar vidas
independentemente das circunstâncias. Tanto é que há um juramento muito belo
que todo médico faz.
O Kung Fu transforma o vício em virtude
Ser um ser humano livre, que age por sua própria lei baseada na razão,
não é tarefa fácil. É preciso combater nossas inclinações naturais e pressões
sociais. É preciso ter autoconhecimento e reflexão. Ser livre e autônomo é
criar para si uma lei que deve ser seguida a risca, independente de fatores
externos. Porém, isso só é possível com uma enorme força de vontade.
Há diversas maneiras para treinar nossa força de vontade, o Kung Fu é
uma das mais eficientes. Nessa arte marcial treinamos nosso corpo para resistir
às tentações corporais e mentais. Nas aulas temos que seguir os comandos do
instrutor a risca. Acontece que, muitas vezes, queremos beber água ou sentar
para descansar as pernas. Mas não é sempre que o instrutor permitirá isso. No
início, o aluno acha que a sensação de sede e cansaço são impossíveis de
resistir, como se fosse uma ordem absoluta do corpo. É normal ele sentir isso,
pois, na maioria das vezes, ele é escravo do seu próprio corpo. Mas com o tempo
ele percebe que ele pode sentir sede e continuar treinando. Ele pode estar
cansado e dar o seu máximo, na aula, no trabalho e nas suas relações de afeto.
Isso não acontece da noite para o dia, primeiro há um momento de heteronomia,
onde o instrutor dá os comandos, mas com o tempo o aluno desenvolve a autonomia
e o instrutor se torna um guia. Um aluno faixa preta treina com ou sem a
presença do instrutor, pois ele já está em um estado de autonomia. Por isso é
preciso treinar por um bom tempo para realmente se libertar de amarras que não
foram impostas por nós.
De maneira similar o Kung Fu nos faz abandonar hábitos da sociedade para
criar hábitos de excelência. É comum para o brasileiro se atrasar, faz parte
(gostando ou não) da nossa cultura. É possível contar nos dedos quantas vezes
você foi ao médico e ele te atendeu no horário (ou quantas vezes você chegou na
hora!), ou então quantas reuniões com os amigos que foram combinadas com
horários específicos e nunca respeitados. Em uma academia de Kung Fu isso é
inaceitável. Chegar com antecedência faz parte da vida marcial do aluno desde a
faixa branca. Se ele não se tornar pontual ele nunca treinará direito.
Também acontece isso com os compromissos que criamos. Nós usamos nossas
palavras de forma muito leviana. É muito comum um aluno dizer para o instrutor
ao sair da academia: “até amanhã”. Para ele isso é uma cortesia, uma forma de
se despedir e dizer que ele quer te ver de novo. Mas se o aluno não aparece no
dia seguinte ele terá mentido para o instrutor. Exagero? Só para as pessoas que
usam as palavras levianamente. Esse costume de falar e não fazer é tão
culturalmente aceito que é de se estranhar que reclamemos de políticos que não
cumprem suas promessas. Por isso, no meio do Kung Fu, os alunos mais antigos
pensam duas vezes ao se despedir. Eles dizem “até breve”, ou “até daqui a tal
tempo”. Esse cuidado é mínimo, mas tem um efeito gigantesco. Agora o aluno sabe
que a promessa é dívida e que, se há alguma confiança entre os seres humanos,
as palavras tem que ter a devida gravidade que elas merecem. Elas devem ter peso de
uma lei criada autonomamente.
Com hábitos condizentes com o dever e o compromisso a pessoa passa a ter
um cuidado com ela mesma. Ela passa a ter respeito com suas palavras,
compromissos e desejos. Ela não deixará que a preguiça que ela sente, que a
pressão da família e amigos faça que ela desista de algo que ela quer. Quantas
vezes não abandonamos projetos e sonhos pois “faltava tempo”, “eu estava muito
cansado” e ainda “fulano, pessoa que prezo tanto, não aprovaria”.
No final das contas, o Kung Fu nos ajuda a criar leis para nós mesmos
que servirão de base para a realização de metas, objetivos e sonhos. Sem a
autonomia é impossível ser livre. É só através de muita labuta e treino,
paciência e perseverança que conseguiremos destruir as amarras externas à nossa
vontade. Só assim para conseguirmos ser pessoas donas do nosso próprio destino.
Jonas Bravo