Podemos entender virtude como uma inclinação que um indivíduo tem de fazer o bem. Temos virtude a partir do momento em que praticamos ações que farão bem para nós e para os outros. Já o vício seria o oposto: é toda ação que nos fará mal. Quando observamos o treinamento de Kung Fu percebemos que há uma relação, quase lógica, entre o treinamento marcial e o cultivo das virtudes.
Uma pessoa que treina Kung Fu é reconhecida pela sociedade por várias coisas. Uma delas é o seu condicionamento físico. Quando você conhece algum faixa preta se espera que ele possa executar tarefas com o corpo com uma destreza e rapidez acima da média. Mesmo assim, a característica mais marcante de um artista marcial é o seu comportamento diferenciado. Grande parte dos filmes e livros que abordam o Kung Fu apresentam um personagem que possui caráter elevado e extremo autocontrole, são pessoas que tem coragem de enfrentar qualquer desafio, tem a disciplina para desenvolver qualquer habilidade e tem o compromisso de se manter firme nas suas palavras, ou seja, elas são virtuosas.
Essa forma de agir acaba sendo um diferencial do praticante de Kung Fu em relação às outras pessoas em geral, pois, no mundo contemporâneo, o que vemos é um descaso com o agir virtuosamente. Ao mesmo tempo em que todos nós reclamamos que não há educação e nem respeito na sociedade vemos que essa mesma população que reclama (isso inclui eu e você) não age virtuosamente. Há uma contradição entre o que queremos ser e o que de fato somos. Quando refletimos e nos confrontamos com essas questões pensamos que esse decaimento moral se deve aos meios de comunicação que nos bombardeiam com bobagens e informação imorais. Ou então culpamos as famílias que não estão preparadas para criarem pessoas virtuosas em um mundo "já perdido".
O ponto é que se não estamos sendo tão virtuosos quanto queremos é porque não estamos treinando o suficiente. Podemos achar que a virtude ou o vício é um traço imutável nosso, assim usamos todo tipo de frases para nos eximir da responsabilidade de agir virtuosamente, por exemplo, quando alguém questiona outra pessoa sobre suas ações muita gente fala coisas do tipo: "eu sou assim, não consigo mudar", "é muito mais difícil do que você pensa", " esse é o meu jeito" ou "é culpa da minha criação". Pensar desse jeito traz um pressuposto perigoso: o de que é impossível aprender a virtude.
Aristóteles, filósofo grego do séc. IV A.C, entende que as virtudes dependem de treinamento e que mesmo diante de uma sociedade injusta a virtude é possível:
"a virtude está em nosso poder, do mesmo modo que o vício, pois quando depende de nós o agir, também depende o não agir, e vice-versa. de modo que quando temos o poder de agir quando isso é nobre, também temos o de não agir quando é vil; e se está em nosso poder o não agir quando isso é nobre, também está o agir quando isso é vil. Logo, depende de nós praticar atos nobres ou vis, e se é isso que se entende por ser bom ou mau, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos" E.N. III, 5 – 1113b 10-18
Aristóteles argumenta que a ação é sempre em busca de alguma finalidade específica. Assim quando agimos temos algo em mente que queremos alcançar. Dessa forma temos responsabilidade sobre todas as nossas ações, pois pensamos no que faremos antes de agir. É esse raciocínio que nos impossibilita de acusar uma criança de um crime, já que ela não pode pensar como um adulto, ela ainda não é responsável pelos seus atos.
A fala do filósofo deixa bem claro que temos responsabilidade sobre nossas virtudes e nossos vícios. Se agimos bem ou mal depende de nós. Mas de todo o trecho a parte mais importante para nós é: "depende de nós praticar atos nobres ou vis". A questão aqui é justamente a prática. Para Aristóteles a virtude é uma habilidade como qualquer outra. Se você quer ficar mais forte nos membros superiores você fará flexões. A primeira vez é muito difícil, quase impossível, seu braço treme e você dá de cara no chão. Na segunda vez seu braço treme, mas você não cai. Na medida em que você treina seus membros ficam adaptados e fazer vinte flexões se torna algo banal.
Com a virtude acontece o mesmo. Se você treina a coragem, você ficará mais corajoso, ao ponto de não deixar o medo se transformar em covardia. Imagine alguém que tem medo de falar em público. Essa pessoa deve se expor ao máximo a essas situações visando a superação do medo. A primeira vez que essa pessoa se expõe é uma tortura, a barriga gela, o coração bate descontroladamente, as mãos tremem e a voz não sai. Da segunda vez tudo isso acontece de novo, porém falar fica mais fácil. Depois de algumas tentativas a pessoa se sentirá nervosa, mas ninguém vai perceber isso. Enfim, o medo foi superado.
Dito tudo isso voltemos ao inicio do texto. Por que pessoas que treinam Kung Fu são associadas à virtude? Kung fu significa em linhas gerais "trabalho árduo", é o treinamento de uma habilidade para se chegar à maestria. Quando treinamos o Kung Fu marcial trabalhamos o corpo e mente, porém em uma escola tradicional de Kung Fu aprendemos muito mais que socos e chutes. A ideia é que o treino marcial proporciona uma melhora nas nossas atitudes. O Kung Fu tem um estudo específico sobre as virtudes, o chamamos de “ética marcial” ou o Wu De. O Wu De é um conjunto de qualidades morais que todo praticante deve trabalhar para desenvolver sua técnica e a si mesmo, enquanto pessoa.
Em primeiro lugar temos que reverenciar a sala de treino. Esse sinal de respeito ao lugar em que aprendemos nos coloca em uma posição de humildade. Nós, pessoas que treinam Kung fu, mesmo que saibamos muita coisa, reverenciamos tudo aquilo que há para se aprender. A ideia é que nunca saberemos o suficiente para sermos melhores que ninguém. Isso pode ser imperceptível para o aluno novato, mas com o tempo e treino essa ideia abstrata que se materializa na reverência vai assentando na nossa mente até que o significado disso é transmitido aos outros em todas as nossas atitudes. Você aprendeu a praticar a humildade.
Além disso, ao ingressar em uma escola de Kung fu a pessoa irá encontrar um novo conjunto de regras de convivência. Existe um jeito certo de cumprimentar as pessoas, uma maneira de se dirigir aos superiores (como o Mestre, por exemplo) e até mesmo uma determinada postura em relação ao ambiente. Em longo prazo isso tudo torna o praticante de Kung Fu uma pessoa extremamente atenta ao ambiente em que ela está. Sabendo se comportar mediante um determinado conjunto de regras é fácil para ele se adaptar a qualquer ambiente, como um teatro ou um recinto religioso, por exemplo. Isso dá ao praticante a habilidade de se adaptar a qualquer tipo de etiqueta. Você aprendeu a praticar o respeito.
Mas o mais importante é o senso de compromisso com a sua palavra. Ao treinar Kung Fu em uma escola tradicional você verá que os combinados devem ser cumpridos. Por isso ninguém pode entrar atrasado e nem sair mais cedo da aula. A partir do momento em que você entrou na formação e a aula começou você fez um compromisso de uma hora com seus colegas e instrutores. O fato de você ter que fazer algo simplesmente porque você disse que o faria treina você a ter respeito com você mesmo e com os outros. Isso cria em você um hábito de ser coerente com o que você se propôs. Você aprendeu a praticar a lealdade e confiança.
Todo o treino marcial é voltado para a virtude, ter coragem de enfrentar as coisas difíceis, ter disciplina para não desistir, ter respeito para poder aprender. Assim, se há algum vício que você quer eliminar ou uma virtude para ser desenvolvida, treine bastante e saiba que nenhum traço de nossa personalidade e caráter são imutáveis. Nós somos nada mais nada menos que o conjunto de ações que realizamos.
E você? Quer se tornar uma pessoa mais virtuosa? Para quem já é aluno da TSKF, o treino das virtudes acontece a cada treino e ainda oferecemos um reforço teórico sobre as virtudes através da versão do Wu De moderno escrita pelo Mestre Gabriel e pelo Shifu Danillo Consenzo (lendo livros que
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os desta playlist especial).
E para você que ainda não é aluno da TSKF, entre em contato com uma de nossas unidades e agende uma aula experimental e veja como o Kung Fu pode mudar a sua vida.
Jonas Bravo
TSKF Padre Eustáquio